Minha vira-lata e um acordo com 'papai do céu'
A gente às vezes, não por desinteresse, mas por não dar prioridade a algo, tem um olhar muito superficial sobre determinados assuntos. Sabemos
que as coisas acontecem, até como elas acontecem, mas aquilo vai se tornando
banal. Isso é indesculpável em algumas circunstâncias. Pelo menos para mim que sempre tive paixão e zelo pelos animais. Acho que faço pouco pelos bichos que precisam. Aliás, diante de tantos benfeitores de verdade, eu não faço nada. Mas abomino veementemente as maldades que alguns são capazes de fazer contra tão inocentes seres. E acho que esse pavor por gente desse tipo tem uma explicação muito maior do que o bom senso e a consciência.
Minha primeira história de amor por um bicho, pelo menos que eu me
recorde, foi com uma cadela vira-lata. Eu morava em Belo Horizonte, em um
bairro afastado do Centro da cidade. Do quarto andar do prédio em que eu morava, inclusive era o último andar, eu sempre via uma cadelinha bege do tipo comum, fuçando lixo, recostando-se num cantinho do prédio, perambulando pelas ruas, e minha grande vontade era ir lá brincar com
ela. Eu devia ter uns oito anos de idade e era uma típica criança de apartamento,
mas com todas as vontades daquelas que podiam ir pra rua, que tinham quintais com bichos de estimação e, inevitavelmente, como quase toda criança, dava minhas escapulidas com aquele
sentimento de aventura e medo. É, porque a chinelada ia correr solta se eu fosse
pega. Aquela cadelinha fazia parte das minhas aventuras. Ia brincar na garagem
do prédio e comecei a chamá-la para dividir comigo as peraltices que até
então eram solitárias. Se dei um nome àquela gracinha eu não sei.
Mas da
carinha dela eu nunca vou me esquecer. Mesmo vivendo nas ruas, parecia sempre feliz. E o rabinho dava sempre um jeito de sinalizar sua alegria. Comecei a comer menos no almoço e roubar
pedaços de pão para alimentá-la e ela, super grata e linda, me lambia a cada
pequena refeição que eu a oferecia. Com o passar do tempo ela já dormia na garagem, onde passou a se sentir amada e protegida. Finalmente ela podia ter
um porto seguro. Mal sabia que eu nem mandava nos meus desejos e que
mantê-la ali era o maior risco que eu já havia corrido em toda a minha vidinha.
Ia para escola preocupada com seu bem-estar. Será que ela está bem? Será que a
encontraram? Também não me lembro dos detalhes, mas o fato é que um certo dia fui descoberta pelos meus pais.
Talvez um vizinho dedo-duro que se incomodou com um breve latido ou uma
demarcação de território em um dos seus pneus. Sei lá. Essa parte me emociona até hoje. O meu pai naquela época
não pestanejou. Colocou a minha cachorrinha no carro e a soltou, segundo eu mesma
ouvi ele dizer à minha mãe, no Centro de Belo Horizonte.
Da mesma forma que ela foi meu primeiro animal de estimação, aquele era meu primeiro sofrimento de
verdade. Chorava escondida. Olhava todos os dias pela janela com o coraçãozinho
disparado, só esperando que ela estivesse ali no mesmo cantinho dormindo e
esperando por um pouquinho de comida e um ‘tantão’ de carinho. Mas nada. Dias
depois, mais de uma semana depois, a minha mãe que também se surpreendeu com o que via, me
chamou na porta da sala. Lá estava ela. Meu anjo, minha cadelinha, mais magra
que o normal, com alguns pequenos machucados, subiu os quatro andares de escada e esperou por mim na porta do apartamento. Eu não
sabia o que fazer, como agir. Minha alegria e meu pânico do que poderiam fazer
contra ela novamente eram sentimentos confusos e misturados. O que eu poderia
fazer?
Bem, acho que toda criança pede para ‘papai do céu’ uma ajuda nessas horas. E eu pedi.
Implorei. Rezei para que me deixassem cuidar dela para sempre. Que se comovessem e
nunca mais fizessem qualquer maldade com ela. Pedi que ela fosse minha para sempre,
pois eu queria alimentá-la e protegê-la. Pensei: tanta gente grande contra um
cão tão pequenino e indefeso? Mansa e linda? E sobretudo, ela era minha! Com
que direito podiam tirá-la mais uma vez de mim?
Os dias se passaram e ela foi
recuperando peso, foi ficando alegre de novo e eu sempre contava a história da
minha incrível e esperta cadelinha que foi solta em um lugar desconhecido e
voltou pra mim. Contava na minha escola. Afinal, ela era uma heroína. Uma guerreira. Bem, minhas preces infantis e ingênuas de nada adiantaram. Foi também a minha
primeira decepção com o tal ‘papai do céu’. Logo ele, que eu tinha ouvido falar que jamais
negava um pedido a uma criança e que não abandonava os animais. Ele não me
ouviu. Ele me traiu. Assim eu me sentia. Nunca mais eu soube do paradeiro da minha
amada cadelinha. Nunca. Procurei, chamei, deixei comidinha, chorei. Nada
adiantou.
Depois daquele dia que cheguei da escola, almocei e corri para a
garagem para dar uma parte do meu almoço para ela e vi que a minha esperta
cachorrinha não estava lá e nem em lugar nenhum o meu mundo de tantas
possibilidades foi se tornando um universo de falta de esperança. Dias se
passaram. Meses. E ela nunca mais voltou pra mim. Até hoje lembro
dessa história. Tenho mais de 40 anos e nunca me esqueci daquele bichinho que foi tirado de mim de maneira tão cruel. Mas, mais cruel é ter condenado o
cão a se afastar do seu porto seguro e ter sido ela e não eu a mais punida.
Punida porque uma criança a adotou, a amou e quis ter cuidado dela todo o resto
da vida.
Quando ela foi embora o meu mundo perdeu um pouquinho das cores que toda criança tem. "Criança esquece logo. Compra um brinquedo que passa". Não passa. Não passou comigo. Eu nunca esqueci. E durante um bom período me senti culpada de tê-la amado e cuidado dela por algum tempo. Pois eu pensava: "se eu nunca tivesse chamado a minha cadelinha para a garagem, ela estaria ali, naquele cantinho do prédio até hoje". Quando saía de carro com meu pai, sem que ele sequer observasse, eu procurava em todos os cantos a minha cachorrinha. Cultivei durante muito tempo a esperança de encontrá-la. Criava planos para escondê-la e não deixar que nunca mais a tirassem de mim. Às vezes pensava no quanto ela poderia estar sozinha e triste e com fome e com frio. Eu me culpava. E por fim eu disse ao 'papai do céu': 'você foi muito mau. E dizem que todo mundo que é mau merece castigo. Eu faço um acordo com você. Se não quer ser castigado, faça pelo menos uma coisa: leve a minha guerreira cachorrinha para um lugar onde todas as pessoas adultas cuidem dela de verdade. Não façam maldades. Se você fizer isso eu vou torcer para que não seja castigado. Eu vou até te desculpar'. Coisas de criança...
Infelizmente essa não foi minha última experiência triste com animais com os quais convivi. Enquanto não pude tomar minhas próprias decisões, pagar minhas contas, tive que suportar me afastar ou perder esses anjos. Mas isso depois eu conto. Eu escrevo essa lembrança para que as pessoas pensem o quanto é cruel
abandonar um animal. Seja responsável. Não maltrate, não abandone. Esses
bichinhos jamais farão algo contra alguém. E eu sinceramente nunca vou
compreender como pessoas, ditas racionais, os humanos, podem ser tão insensíveis para achar que bichos não sentem,
não sofrem... Animal não é uma coisa qualquer. Ser irracional não pode
ser tornar uma desculpa para cometer atrocidades e nem sinônimo de abandono.
Até mais ver!
Que lindo, pena ter pais tão ruins e sem coração! :/
ResponderExcluirEi< Brenda Rosa. Na verdade, infelizmente ela nem tinha "esses pais"... A criança da história era eu. E claro que não justifico. Mas se hoje ainda vemos tanta falta de informação acerca da forma de devemos realmente tratar esses lindos seres, imagine há quase quarenta anos? As coisas estão melhorando. Meu pai, o cara da história que levou ela da primeira vez para longe, hoje tem um amor sem limite por uma linda cadelinha... A vida dá voltas. E, ainda bem, oportunidade para revermos nossos erros e posturas. Um beijo e obrigada pela participação. E você, tem uma história bacana pra contar? Vamos adorar compartilhar...
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